Cartas da Mãe - Henfil (Algumas)
E aqui o Documentário Completo O média-metragem Cartas da Mãe é uma crônica sobre o Brasil dos últimos 30 anos contada através das cartas que o cartunista Henfil (1944/1988) escreveu para sua mãe, Dona Maria. Estas cartas, publicadas em livros e jornais, são lidas pelo ator e diretor Antônio Abujamra enquanto desfilam imagens do Brasil contemporâneo. Política, cultura, amigos e amor são alguns dos temas que elas evocam, criando um diálogo entre o passado recente do Brasil e nossa situação atual. Artistas, políticos e amigos de Henfil, entre eles o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, o escritor Luis Fernando Veríssimo, os cartunistas Angeli e Laerte e o jornalista Zuenir Ventura, falam sobre a trajetória do cartunista dos anos da ditadura militar até sua morte. Animações inéditas de seus cartuns complementam o documentário dirigido por Fernando Kinas e Marina Willer.
Natal, 7 de junho de 1978.
Mãe,
Aí, na hora que a coisa tava indo,
tava indo… chega a Copa do Mundo e leva tudo pra lá. É sempre
assim: não conseguimos fazer duas coisas ao mesmo tempo. Não
sabemos assobiar e fazer xixi ao mesmo tempo, não conseguimos
chutar bola e fazer democracia ao mesmo tempo.
Mas sabe o que me dá mais raiva?
Vez por outra vêm me perguntar se eu vou torcer pelo Brasil! Só
porque a gente tá na oposição, eles acham que tamos contra a
seleção também? Sim, porque entre os méritos do último governo
sempre acrescentavam: o governo do Tri! Só pra gente ficar com
ódio do Tri. E a gente era besta, a gente era bobão, não sabia
das coisas e acabou achando que o Tri fosse gol do governo. Gol
deles uma pinóia!
Dessa vez ninguém vai me fazer
ficar contra a seleção pensando que eu tô contra o Ato
Institucional número 5, não. A seleção é do povo, assim como a
greve é do trabalhador!
A bênção do seu filho,
Henfil
Natal, 12 de abril de
1978.
Mãe,
Fiquei muito alegre
quando os dubladores entraram em greve. Hah, sim,
lembrei. Isso não é do tempo da senhora. Dubladores
são aqueles que fazem a voz no lugar dos outros. Por
exemplo, a voz da Kelly, uma das panteras, quem faz
é a Neuza Amaral. A da Farrah, é a Marilisi….
A greve é justa,
questão trabalhista. Ponto final.
Eu estou satisfeito é
porque, depois do advento dos dubladores, nunca mais
ouvimos a voz real do Kojak. Ficou chatíssimo ver
filme de TV. Tanto faz ser John Wayne, Woody Allen
ou Baretta. A voz é sempre a mesma do mesmo dublador.
E a aflição que dá ver o Marlon Brando movendo os
lábios assim, e a voz saindo assado?
Talvez o desespero que
toma conta da gente, quando vê um filme dublado,
seja apenas identificação. Nossa situação é a mesma,
mãe! Nunca notou que a minha voz, a voz da senhora,
do Carlito, da Regina, do Alfredo, da Jane, da Nelma,
do Humberto, do Ivan, a voz de 110 milhões de
brasileiros é feita pelo mesmo dublador?
Eu quero ouvir a minha
voz!
Um beijo do seu filho,
Henfil
São Paulo, 21 de março
de 1979.
Seu João,
Você tinha 23
cruzeiros no bolso e voltava da assembléia do
sindicato. Eles quiseram te tomar os 23 cruzeiros e
você reagiu. Te balearam e te mataram.
Te conheci naquele
almoço com os líderes sindicais quando você
emocionado deu um presente pra a sede da Oboré: uma
imagem da Aparecida. Te vi com o teu sapato de duas
cores, apertei tuas mãos de eletricista e senti teu
silêncio respeitoso por toda a reunião. Aí, na
despedida, você nos sufocou, João. Olhando nos olhos
da gente, disse mais ou menos assim: "Depois de 52
anos fiquei muito honrado, sendo preto, velho e
operário de ter me sentado, conversado e almoçado
com gente branca e intelectual."
Eu te conheci antes
daquele almoço, quando o Sérgio me avisou: você vai
conhecer um líder operário maravilhoso. É um líder
natural lá na GE. De uma alegria. Ele chama greve de
paradeiro.
Você tinha 23
cruzeiros no bolso, te balearam e te mataram.
Tô com saudades, João.
Henfil
New York, 20 de julho
de 1974.
Dona Maria, minha mãe
predileta,
Eu recebi os
biscoitos de farinha e tô com eles escondido debaixo
da cama, que é pra vagabundo nenhum pegar. O doce de
leite com rapadura já acabou. Me fechei no banheiro
e comi tudo numa alegria que só o egoísmo sabe dar.
A mãe da Maria trouxe biscoitinhos de polvilho e
carne-seca. Deus seja louvado!
São Paulo, 11 de abril
de 1979.
Mãe,
Não suporto mais a
saudade sufocante do meu irmão Betinho. Minha vida
segue sem sentido e sem alegrias. Sai um disco do
Chico e não consigo me entregar no canto que
gostaria de partilhar com ele e com a Maria. O grito
de gol fica preso no peito porque me sinto sozinho
no Maracanã mais lotado.
Profissionalmente?
Estou bem, muito bem. Mas eu queria que eles também
se orgulhassem de mim ao receberem o jornal de
manhãzinha na porta da casa deles, aqui, como todos.
Faltam duas palmas, duas risadas brancas e
quentinhas na hora em que as cartas são lidas ou as
gracinhas são feitas na "Revista do Henfil".
Perdoa, mãe, mas
biscoito de farinha só é gostoso se mastigado
olhando nos olhos do irmão que sente na mesma hora a
mesma delícia.
A bênção de um dos
seus filhos,
Henfil
São Paulo, 13 de
outubro de 1982.
Mãe,
Naquela manhã ou tarde
de 1500, quando gritaram TERRA À VISTA!, os livros
de história pensaram escutar navegadores,
descobridores. Mas o que os índios viram, a olho nu,
foi o grito de guerra dos corretores imobiliários.
Quatro séculos
depois, quem não morreu, como os Pataxó, Botocudo,
Tupiniquim, acordou gelado feito platéia de Calígula.
O mesmo grito agora em replay: TERRA À
VISTA!!
Veja a senhora, o
Governo da Bahia foi quem distribuiu títulos de
propriedade aos fazendeiros. Aí valeu tudo para o
saque, de corrupção de funcionários a queima de
ranchos.
Os índios para
sobreviver não precisam de geladeiras, TVs,
videocassetes, ioiôs, Angras nem aspirinas.
Arrancados da terra, simplesmente morrem, estão
morrendo, vão morrer.
A SENHORA É
CÚMPLICE! Perdoe a frase de efeito. Mas quem agora
sabe e não impedir esse genocídio passa a ser
cúmplice. Do presidente à minha mãe.
Henfil.
São Paulo, 1º de
setembro de 1978.
"Eu nunca soube amar.
Eu nunca soube amar a cada um. Eu nunca soube amá-los
como indivíduos. Eu nunca soube aceitá-los como
feios, fracos e lentos. Tragam-me um doente e não
chorarei com ele. Mas me mostrem um hospital e
derramarei rios e mares. Eu não sei falar e ouvir um
homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer
coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser
herói, mas não sou capaz de ser enfermeiro. Sou
capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser
pequeno. Eu nunca dei uma flor. Nunca amei uma
pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos,
escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade,
sem entregar. Por que desenho, por que escrevo
cartas? Minha arte é fruto da minha importância de
viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que
escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse
recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês,
tudo com meu grande beijo. Vocês vão me reconhecer
fácil: vou ser o mais feliz de vocês. Henfil"
Rio de Janeiro, abril
de 1977.
Querido filho
Henriquinho,
Eu hoje estou me
sentindo bem melhor, mas ainda não agüento andar. A
perna dói bastante com a ciática. Nós aqui igual a
não ser as saudades dos filhos ausentes. No Natal é
que eu sinto mais. Eu queria tanto que seu irmão
pudesse voltar. Eu chego a imaginar ele sentado na
sala com todos. Eu recebi um retrato dele. Achei tão
magrinho, tão tristinho. Será que esse tormento não
vai acabar nunca? Eu tive muita esperança quando
este novo presidente entrou. Achei ele com um
jeitinho bom. Eu rezo muito pro seu irmão poder
voltar. Mandei biscoitos pra ele pelo correio como
lembrancinha de Natal. Devem ter chegado duros.
Todos de casa mandam um abraço. Um beijo para
Berenice e um abraço pra você. Sua mãe.
D. Maria,
Desviaram
dinheiro do INPS para a construção da ponte Rio-Niterói
e da hidroelétrica de Itaipu. Todo mundo sabe como
muitas das grandes empresas particulares e estatais
dão calote no INPS.
Aí, claro, deu
esse furão que eles dizem existir porque estamos
gastando demais com assistência médica. Mentira! 90%
da população brasileira corre do INPS.
Bão, mas
repetiram esta gigantesca mentira mil vezes e agora
vão decretar o aumento da nossa contribuição para
10%.
Vamos lá, gente: o
povo acaba de decretar um aumento de 10% nas doenças!
Viva a
tuberculose!
Viva a meningite!
A bênção do seu
perebinha.
Henfil
São Paulo, 9 de
janeiro de 1980.
Mãe,
Sem piadinha. Vou
me abrir.
Eu tenho acordado
de uns seis meses para cá sem ânimo, sem esperança,
sem vontade de brilhar, de lutar, de mudar a Lucinha,
O Brasil, o mundo, o universo!
Muitas noites eu
não durmo, assombrado. Pensando assim: tô ficando
velho, é isso. Talvez o pessoal odara tenha razão e
eu já seja coisa antiga.
Passo então a
pensar angustiado em como enfrentar minha velhice
tomando fortificantes, complexo B, mudando
meu guarda-roupa.
Bão.
De repente eu
percebi que o mano Betinho e a Maria também estão de
farol baixo.
Aí, anteontem,
pego o jornal e vejo o resultado da pesquisa Gallup
que dizia que 71% dos brasileiros estão pessimistas.
Há uma epidemia de desânimo e impotência assolando o
país nesse exato momento!
O atual sistema,
para governar, nos fez pessimistas. E pessimista não
dorme, não faz amor, não faz partidos, não incomoda,
não reclama, não briga.
Que diabo de país
é este?
Pessimistas de todo o
Brasil, uni-vos! Somos a maioria! Às ruas!
Henfil
São Paulo, 26 de
dezembro de 1979.
Mãe,
Aqui estou eu, em mais
um Natal, fazendo desta carta meu sapato colocado na
janela.
Eu fui bom este ano,
mãe. Eu acho que fui muito bom. Eu fui solidário com
todos os meus irmãos Betinhos. Fiz greve com todos
os Lulas. Quebrei Belo Horizonte como todos os peões.
Voltei pro país que me expulsou como todos os
Juliões. Dei murro em ponta de faca como todos os
Marighellas. Cantei as prostitutas, as mulheres de
Atenas e joguei pedra na Geni como todos os Chicos
Buarques. Aspirei cola como todos os pixotes. Fui
negro, homossexual, fui mulher. Fui Herzog, Santo
Dias e Lyda Monteiro.
Fui então muito bom
este ano, mãe.
Aqui está minha carta
sapato.
Vou fechar os olhos,
vou dormir depressa.
Esperando que
meia-noite todos entrem pela minha janela. Me façam
chorar de alegria, que eu quero viver!
A bênção,
Henfil
Meu filho,
Eu faço votos que você
esteja com saúde e feliz.
Nós aqui vamos indo como sempre.
Henriquinho, você é louco? Cuidado, meu filho, com
as cartas de Isto É. Estão engraçadas, mas
podem não ser compreendidas. Você sabe o que faz, eu
talvez seja muito medrosa. Vou mandar pelo Jaguar
uns biscoitos pra você dar pros amigos, como você
faz, não é? Os biscoitos não ficaram bons, acho que
a goma não é boa, da outra vez vai melhor.
Todos aqui mandam lembranças.
Sua mãe, Maria.
Não
perca!
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